Entenda porquê eu faço pouco pela luta antirracista

Venho refletindo muito nos últimos tempos sobre o lugar que ocupo na nossa estrutura social e nesse texto vou compartilhar isso e levar você a refletir também sobre o seu papel nesse contexto e sobre quais ações você pode tomar já a partir de agora para contribuir com o movimento antirracismo. Eu sou branco, homem cis branco e o mundo foi feito para mim, meu fenótipo é sinônimo de portas abertas em quase todos os ambientes que eu desejo e desejei ocupar ou frequentar. Meu cabelo crespo não me faz negro, meus avós e familiares negros não me fazem negro, minha ainda incipiente consciência racial não me faz negro.Eu sou branco e privilegiado.

Minha branquitude é produto de uma pseudociência do pós-abolição que trouxe imigrantes europeus para “embranquecer” a população do Brasil, acreditava-se que os genes brancos sobreporiam os genes negros da população, o que somado às políticas de genocídio, culminaria em uma ideia de que não haveria mais negros no Brasil passadas algumas gerações. Meus avós maternos eram negros, meus tios maternos são negros, mas eu nada ouvi falar da negritude da qual se originaram meus avós, eles não sabiam, não tinham ideia, porque essa parte da ancestralidade e história deles lhes foi roubada e negada, minha mãe no entanto é branca e muito ouvi falar da bisavó italiana de quem ela puxou os olhos claros, em contraste.

Minha avó paterna tem traços e descendência indígena, mas ela nunca me falou sobre isso; sei que meu pai e meus tios já ouviram muitos insultos sobre “ter sangue bugre”, mas ninguém sabe sobre essa origem, ninguém sabe sobre essa ancestralidade, ninguém fala sobre isso na minha família paterna e a razão para isso é a mesma pela qual não se falou da negritude da minha família materna: O apagamento sistêmico e estrutural das memórias do genocício e  exploração dos africanos escravizados e também da dizimação dos povos indígenas no Brasil. A memória real que minha família tem de suas origens é a posição social que ocupa, a da pobreza, da escassez e ausência de educação formal para todas as gerações antes da minha, da exaustão que está já no DNA em relação a essa sociedade desigual. Minha mãe trabalhou desde os 6 anos de idade e meu pai desde os 8 e eu levo comigo o legado das lutas deles e dos que vieram antes deles, se eu pude estudar foi por conta do resultado das lutas acumuladas de 4 gerações que vieram antes de mim.

Outra questão que precisamos demarcar para melhor entendimento é que o racismo no Brasil é um racismo de marca e não de origem, ou seja sofre racismo quem tem negritude aparente e não quem vêm de origens pretas, isso me favoreceu e muito, sem desprezo por minha própria trajetória, mas o fato de minha pele ser branca e meus traços não serem negróides fez com que minha ascensão social da pobreza para classe média alta se desse em pouco mais de 10 anos a partir da minha entrada para o ensino superior e o mercado formal de trabalho, enquanto outras pessoas com traços africanos ou indígenas que são tão ou muito mais capazes e qualificadas do que eu e que possivelmente empreenderam muito mais empenho em suas carreiras e formações, seguem na linha da pobreza mesmo após 132 anos de abolição e de tantas gerações lutando por melhores condições de vida.

Eu estou nesse esquisito lugar, com o desconhecimento da minha ancestralidade e ainda assim herdeiro de suas lutas e esperanças, mas ao mesmo tempo detentor de um rio de privilégios por ser um homem branco, mesmo ao escrever esse texto sinto essa estranheza no local de fala: Como falar da pobreza estrutural da qual eu venho e do quanto a branquitude favoreceu minha ascensão social sem parecer meritocracia? 

São tantos cruzamentos complexos, mas o fato é que hoje existe em mim um crescente incômodo, um desconforto que todes nós branques precisamos sentir uma vez que entendamos a estrutura racista da qual somos todes parte, e que por sermos parte, somos todes por consequência RACISTAS, eu sou racista, você é racista, pois o racismo no Brasil não é por adesão, a estrutura e organização social está posta em bases e engrenagens racializadas e se existimos nessa estrutura, logo somos racistas. Doeu? Ótimo, é o começo, Tá difícil de aceitar? Vamos por analogia então, podemos olhar para o capitalismo, você pode não gostar do sistema capitalista, ser filiade a partidos de cunho comunista por exemplo, mas ao existir dentro de uma estrutura capitalista você é parte do capitalismo. Captou?

Esse desconforto que você talvez sentiu, e que eu sinto,  é o que tem me feito estar atento, vigilante e tem guiado alguns movimentos profissionais, eu não consigo mais por exemplo estar em ambientes profissionais predominados por pessoas brancas e acolher isso como normal, venho dispondo meu conhecimento e trabalho para mentorar profissionais e empreendedores negros de forma voluntária, tenho exercitado a escuta obsessivamente para reconhecer dores que nunca vivi em razão da minha cor de pele, e sigo vigilante a todas as oportunidades de usar o privilégio branco em favor das lutas antirracistas, mas existe um constante sentimento de que é muito pouco, de que é nada, porque de fato é realmente muito pouco, a maior parte do tempo em que exerço minha vida, estou disfrutando de privilégios e haja vista a disposição da estrutura do capital em que estamos inserides, eu sigo vendendo a maior parte do meu tempo profissional para enriquecer pessoas brancas que me contratam para exponencializar os ganhos de seus empreendimentos e isso perpetua a estrutura, eu perpetuo a estrutura.

Eu faço pouco ainda, muito pouco, quase nada, é desconfortável amigues branques, mas é preciso que nos seja desconfortável, do contrário continuaremos míopes aos nosses privilégios desde os mais pequenos aos mais relevantes, sem esse desconforto não vamos tomar ações para transformar a estrutura e sem as nossas ações, o genocício e o apagamento se perpetuam.

Agora mesmo, estou terminando esse texto e já vou sair para comprar algumas coisas em uma loja de artigos domésticos, eu sei que é só terminar o texto, sem pensar muito, calçar minhas havaianas e ir, e isso é um privilégio, eu sei que não serei observado pela camiseta furada que estou vestindo, que não serei seguido pelo segurança da loja, não me ocorre que eu tenha que estar com a carteira de identidade na mão para o caso de questionarem se o cartão é meu ou se a polícia me parar na rua antes de chegar à loja, essas coisas nunca aconteceram comigo, enquanto eu escrevo e reviso esse texto meu namorado está passando a camiseta que ele vai usar para me acompanhar, calçando os sapatos fechados apesar do calor que faz em Floripa hoje e conferido os documentos na carteira para me acompanhar. 

Você sabe o porquê a preparação dele para a saída é tão diferente da minha?

Responda nos comentários e nos conte outros privilégios e desprivilégios que você identifica segundo sua cor de pele.

Compartilhe nas redes sociais
Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest
WhatsApp

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress